O "Zé", aquele que tanta falta fazia a Lisboa, já não é "provedor do cidadão", lamenta, amargamente, o Bloco de Esquerda. É capaz de ter razão: José Sá Fernandes parece outro. Está mais institucional e menos disponível para desembainhar a espada. Devem ser efeitos da "real politik", um vírus que lhe corrói a alma desde que começou a andar de braço dado com António Costa. Suspeita-se que passou de provedor a "provador". Tomou o gosto ao poder, esse supremo afrodisíaco que perde por completo a eficácia se tiver de conviver com a contestação.
No entanto, como se diz no futebolês quando o jogador falha o remate decisivo, o Bloco só pode queixar-se de si próprio. Adquiriu peso eleitoral às cavalitas do "Zé" e ganhou poiso no governo de Lisboa graças a um acordo com o PS, que subscreveu de livre vontade. Se concluiu que o seu representante no Executivo não cumpre o programa político, tem todo o direito de romper com ele. Tem é de pagar as favas, porque sendo independente não o pode substituir. É este o ponto que interessa discutir. Mais do que a guerrilha em ano pré-eleitoral.
Em Portugal, onde um dos temas predilectos do anedotário são "os políticos"- labéu atirado à ventoinha, indiscriminadamente, que em conversas de café significa pessoas pouco recomendáveis, potencialmente desonestas - fica sempre bem imputar aos partidos todos os males do Mundo. Por contraposição, ser independente cai no goto. Foi por isso - e pela combatividade demonstrada enquanto cidadão civicamente empenhado, concorde-se ou não com as causas defendidas - que o Bloco "recrutou" Sá Fernandes. A estratégia pouco teve de original. Muitos outros partidos acolhem independentes no regaço, por causa do seu valor no mercado eleitoral.
Desde que a lei permite candidaturas independentes, apenas até ao nível municipal, uma tendência tem vindo a manifestar-se: poucos são "genuínos". Abundam casos de ex-militantes de partidos que, de um momento para o outro, se viram contra a "casa-mãe". Alguns até têm assento na sala de reuniões do Executivo lisboeta. Com frequência, esses independentes apresentam-se como "puros", regeneradores do sistema, cheios de boas intenções. Prontos a denunciar as malévolas maquinações dos partidos de que na véspera faziam parte.
Sá Fernandes não encaixa neste perfil de ressabiado, é certo, porque que se saiba nunca teve cartão partidário. Mas não resistiu a lançar a "boca": o Bloco move-se, afirmou, por "interesses partidários" (o tom negativo fica nas entrelinhas). Só duas perguntas muito simples. Por quais haveria de mover- -se? É ilegítimo que os partidos tenham "interesses" ou só os individuais são admissíveis?"
Nestes tempos escolarmente muito conturbados, lembro-me muitas vezes dela. Não me lembro do nome, mas nunca hei-de esquecer a sua voz mansa, o cabelo todo branco (embora ainda fosse nova), o casaco comprido castanho, e a malinha enfiada no braço.
Tinha vindo de outra escola, e também não aqueceu ali o lugar: eram tempos complicados, e pensar pela própria cabeça (e - pior do que isso - pôr os alunos a pensar pela deles) pagava-se caro.
Nunca soubemos o que lhe aconteceu. Como na cantiga, "às duas por três chegou/ às duas por três partiu".
A primeira vez que entrou na nossa sala de aula, olhou para todas como se não soubesse o que havia de nos dizer. Depois abriu a malinha. Da malinha tirou um livro.
Um livro muito pequeno, de uma colecção chamada "Miniatura". Voltou a olhar para nós, abriu o livro e começou a ler. Era uma história estranha, que se passava numa terra que nem sabíamos onde ficava, uma história onde não havia mulheres a apaixonarem-se por homens que não lhes ligavam nenhuma, ou exactamente o contrário, como nos romances da "Biblioteca das Raparigas", que habitualmente líamos.
Era a história de uma terra aparentemente normal onde, de repente, começavam a aparecer ratos mortos, muitos ratos mortos. E, depois dos ratos mortos, começaram a morrer pessoas, muitas pessoas, até que alguém ordenou que a cidade fosse fechada.
Foi assim que nós, meninas de 15 anos, num liceu lisboeta no Portugal salazarento de finais dos anos 50, nos apaixonámos todas pela "Peste", de Camus.
A seguir à primeira leitura, ela explicou-nos quem era o autor, que terra estranha era aquela Oran onde tudo se passava, e disse-nos que estivéssemos sempre com muita atenção, porque às vezes as histórias tinham de ser entendidas para além das palavras.
Nos outros dias, tudo se processava da mesma maneira: entrava, abria a malinha, tirava o livro, "ora vamos lá ver onde ficámos da outra vez" - e lia.Sem floreados, sem "powerpoints", sem "Magalhães": a sua voz e mais nada. 50 minutos depois, a campainha tocava, ela fechava o livro, metia-o na malinha e saía.
E nós saímos da sala meio atordoadas, com a sensação de sermos muito mais adultas. E, no recreio a seguir, nunca tínhamos vontade de falar.
Não, evidentemente que "A peste" não fazia parte do programa! E as aulas que ela nos dava não eram de Português, ou de Francês, ou de outra disciplina curricular.
Acontecia apenas que tínhamos duas professoras que faltavam muito. E ela vinha, pura e simplesmente, dar-nos aulas de substituição."
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