quarta-feira, março 08, 2006

Hoje ... de Outros Tempos

Por causa do dia de hoje
(Reeditado do "Novo Arco Íris")

Mulher, ... Sempre! Ou como a evolução da espécie humana ainda criará o Dia Internacional do Homem (por sinal, no mesmo mês, a 19 de Março?)!

Como sinto algo de sombrio sempre que oiço falar de dias internacionais, sobretudo quando evocam o que nem devia ser evocado, porque não há fundamentos para evocar o que nunca careceu de ser evocado! Mulher é, independentemente de quem ou do que quer que seja que digam, como eu sou, assim como qualquer um de nós é. E para o sermos também não carecemos que nos evoquem! Nem, creio, gostaríamos que nos atribuissem um dia em que todos parecem nos querer evocar, num como que sentimento de pena ou pretensa compensação pós-operatória.

Por isso, prefiro evocar, neste dia de 8 de Março (embora já o esteja a fazer no começo do dia seguinte), Fernando Pessoa, quando, com o Guardador de Rebanhos, cria o seu heterónimo Alberto Caeiro.

O GUARDADOR DE REBANHOS
1
Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janella.
Mas a minha tristeza é socego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ella dar por isso.
Como um ruido de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que elles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.
Pensar incommóda como andar á chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.
Não tenho ambições nem desejos.
Ser poeta não é uma ambição minha.
E´ a minha maneira de estar sòsinho.
E se desejo ás vezes,
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),
E´ só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silencio pela herva fóra.
Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mimNo cimo d´um outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéas,
Ou olhando para as minhas idéas e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não comprehende o que se diz
E quer fingir que comprehende.
Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapeu largo
Quando me vêem á minha porta
Mal a diligencia levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé dúma janella aberta
Uma cadeira predilecta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou cousa natural -
Por exemplo, a arvore antiga
A´ sombra da qual creanças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.
8 - 03 – 1914
(Retirado do Google.pt)